domingo, 17 de janeiro de 2010

... e avante!

     E ele não era filho de bruxos, muito menos filho de deuses. Há quem diga que seria estranho acreditar que ele era um vampiro ou um lobisomem juvenil. Não, ele também não era seguido por cavaleiros. E nunca participou de uma sociedade que precisaria destruir um anel.
     Ele era apenas um ser humano normal. Ou deveria ser um ser humano normal. O fato é que tinha alguns poderes, mas por ser isolado dos outros humanos ninguém sabia. Ninguém ao menos desconfiava a força que passava pelas veias daquele jovem garoto de dezesseis anos.
     E eram poderes fantásticos se bem lembro.
     Tudo começou quando nasceu. Parto normal. Seu primeiro desafio. Nascer. E nasceu bem, com saúde. Era o sétimo filho de um casal que morava no suburbio pobre de uma metrópole desorganizada. E teve que crescer na pobreza. Com um pai que bebia e batia na mãe. Com uma mãe que apanhava e dava grande parte do seu salário à igreja para conseguir uma vaga no coração do Criador.
     Foi nesse contexto que seus poderes apareceram. Criados um a um pela necessidade de crescer.

O primeiro poder: Sobreviver à fome.

    Pouco se tinha para comer. O dinheiro que o pai não bebia e a mãe não dava servia para pagar algumas contas e o restante servia para o alimento, que por conta destas questões era pouco. Muitas vezes o que sobrava para ele era o caldo de feijão. Quando cresceu um pouco, descobriu o lixão e a mesa ficou farta.

O segundo poder: Crescer

     Não cresceu muito. Mas conseguiu chegar a uma estatura considerável. Tinha os braços fortes das latas de água que buscava numa bica que ficava longe da sua humilde casa. Sem contar das brigas que tinha que vencer para continuar a crescer. Todos os dias apanhava muito, e quando desmaiava rápido não apanhava tanto. Era o seu principal golpe.

O terceiro poder: Imunidade ao frio.

    Quando completou doze anos resolveu sair de casa. O pai havia morrido de cirrose e a mãe estava tendo um caso com o pastor da igreja, que agora levava todo o dinheiro dela. O homem gordo de terno e gravata batia na mãe com a bíblia. Sentia raiva da situação por não poder vencer apenas desmaiando, então resolveu ir sem dizer adeus. E morou embaixo do viaduto e continuava indo ao lixão. Não iria nunca roubar para se alimentar. A unica roupa que tinha e o unico cobertor que tinha o fizeram ter esse terceiro poder. Nas noites de frio se aquecia com as folhas de jornal e foi neles que aprendeu a ler. Não sozinho, mas com a ajuda de um velho com quem dividia o viaduto.

O quarto poder: Sonhar.

     E ele era um sonhador. Sonhava em sair daquela situação. Achava impossível. Queria ter um trabalho digno, ter mulher, filhos e um carro. Qualquer um desses que passavam no viaduto. Queria uma mulher trabalhadora que acreditasse na vida. Ter dois filhos que ensinaria o poder de viver. O poder de crescer. O poder de não ter frio. E o poder mais importante, o poder de sonhar.

***

     E foi como em um sonho que tudo mudou. Um dia ao ser atropelado por um cidadão teve a certeza que tudo mudaria. Sentiu o sangue subir a garganta. Sorriu. Estava morrendo. Então aquilo ali era morrer. Estaria livre para nascer em outra condição.
     Mas não morreu. Com os poderes que tinha não seria fácil assim morrer. O mesmo homem que o atropelou era professor universitário e tinha alguns poderes. E o principal de todos era o de dar oportunidades. E após a alta do garoto, ofereceu abrigo, alimentação, bolsa de estudos. Em resumo, apenas uma oportunidade.
     E hoje há quem diga para este velho morador de viadutos que o garoto estuda em uma escola no alto de um edifício. E quem o escuta subindo pelo elevador sabe que ele sussurra:
     - Para o alto e avante!

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