domingo, 23 de maio de 2010

O Reino de Hiperbórea

LIVRO UM - Os buracos de minhoca
Capítulo 1 - Nas ruas cinzentas


Demorei muito tempo para pensar e digerir sobre tudo o que aconteceu. Nunca é fácil contar histórias de guerras, mesmo quando muitos já decidiram contar. Falam sempre em vencedores e perdedores. Falam que a história sempre é contada por aqueles que venceram, mas eu discordo. Em qualquer guerra, quando o primeiro ser vivo morre a vitória deixa de existir.
Muitas pessoas morreram nesta guerra que se passou neste Reino. E vou contar a história sobre a ótica de algumas dessas pessoas que morreram em vão, por uma vitória mentirosa. Por uma paz falsa, já que a guerra continua acontecendo dentro de cada um dos que sobreviveram. Não existe vitória justa. Mas a justiça nem sempre está do lado certo.
No Reino de Hiperbórea a justiça ficou do lado de fora. Dentro do meu peito os jovens que morreram continuam vivendo e morrendo de forma injusta. Esta é a história dos jovens que foram recrutados para criar os seres que venceriam a guerra. Esta é a história de uma jovem que mudou o rumo da guerra. E ela veio para cá não por acaso, mas por escolha.
E na noite anterior as nuvens haviam parado de derramar suas lágrimas. Era uma cinza manhã de um dia qualquer. Alguns cachorros latiam para os malditos gatos que insistiam em desfilar a liberdade e passeavam pelos muros com os olhos famintos. As pessoas com suas capas amarelas se protegiam de uma chuva que fingia que em breve cairia novamente. Tudo ia ao ritmo de sempre.
Ísis estava em casa protegida daquilo tudo. Comia banana amassada e tomava um copo de leite. Ainda tinha algum tempo até ter que sair correndo para escola. Tinha tempo para sempre estar alguns minutos atrasada. Aprendeu esse comportamento com o pai, um historiador amante do Egito. Estava sempre atrasado para um achado arqueológico que mudaria o modo como as pessoas entenderiam a história egípcia, mas ao invés de banana amassada e copos de leite, o que o atrasava era os copos de uísque.
E foi assim que ele veio a falecer. Os rins pararam de funcionar, o pulmão não quis mais aceitar a fumaça do cachimbo e o coração concordou com a greve e nunca mais voltou a bater. E Ísis ficou aos cuidados do irmão mais velho Osíris e da mãe Claudia.
Claudia era empresária, dona de uma loja de caixas de presentes. Osíris era sócio e tinha o dever de captar os clientes. Ísis tinha o dever de ficar em casa todo dia e ir para a escola. Voltar pra casa e manter essa rotina. Nos fins de semana dormia na casa de algumas amigas.
E naquele dia mais uma vez ela saiu atrasada para a escola. Pegou a mochila e a chave do cadeado da bicicleta. Pegou a estrada. Até chegar na escola davam uns dez minutos de pedalada em ritmo rápido.
Quando lá chegou, colocou a bicicleta no bicicletário em frente a escola. Deixou seu veículo ali cadeado. E mais uma vez ela veio falar comigo.
- Trouxe uma maçã para o seu café da manhã, senhor Bote...
- Muito agradecido, minha pequena!
- Não sou pequena! Tenho treze anos. Preciso repetir todos os dias?
Nós dois sorrimos. Peguei a maçã e a vi se afastar. Só voltaria a vê-la depois de quatro horas. Quando ela iria me trazer o que sobrou do refrigerante.
O tempo dela fazer a escolha estava cada vez mais próximo. O último buraco de minhoca do ano estava para se abrir. E Hiperbórea esperava que eu fizesse o meu trabalho. Levar uma adolescente que não tinha medo de um velho cego de roupas pretas que tinha sempre uma história nova para contar.
A chuva veio fina. E meus cabelos umedecidos esperavam o dia certo para fazer a revelação. Não tinha dúvida que o dia estava realmente próximo e eu poderia voltar a minha terra que há muito sofria com uma guerra sem qualquer fundamento.